Discussão gira em torno da possibilidade de suspensão ou não da exigibilidade de créditos não tributários
A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou, sob o rito dos recursos especiais repetitivos, os Recursos Especiais 2.007.865/SP, 2.037.317/RJ, 2.037.787/RJ e 2.050.751/RJ, no último dia 20 de junho, para definir se “a oferta de seguro-garantia ou de fiança bancária tem o condão de suspender a exigibilidade de crédito não tributário”. Esses recursos advêm de ações anulatórias de multas administrativas, nas quais foi apresentado seguro-garantia judicial visando à suspensão da exigibilidade dessas multas. Os acórdãos foram publicados em 30 de junho.
Conforme informações prestadas pelo, à época, presidente da Comissão Gestora de precedentes do STJ, “o aporte de recursos especiais nos quais se discute a matéria em comento é recorrente no STJ, como se depreende de pesquisa à base de jurisprudência dessa Corte, por meio da qual foram recuperados, aproximadamente, 25 acórdãos e 518 decisões monocráticas proferidos por ministros componentes das Primeira e Segunda Turmas, contendo controvérsia semelhante”. Diante da existência de múltiplos recursos especiais com fundamento em idêntica questão de direito, o STJ pode julgar dois ou mais deles como repetitivos, para fixar orientação jurídica aos casos em que a mesma matéria esteja em discussão.
A tese a ser firmada pelo STJ, uma vez decidida, terá efeitos vinculantes e deverá ser observada por todos os órgãos integrantes da Justiça Comum (artigos 927, III, e 1.040 do Código de Processo Civil), composta pela Justiça Federal e pela Justiça Estadual.
O rito que regerá o procedimento perante o STJ é estabelecido nos artigos 1.036 e seguintes do Código de Processo Civil e nos artigos 256 e seguintes do Regimento Interno do STJ, que preveem a suspensão dos processos que versem sobre a matéria jurídica afetada. Ao analisar os recursos supracitados, o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela suspensão de todos os processos pendentes e em trâmite no território nacional, individuais ou coletivos, que versem sobre a mesma matéria, incluindo-se, se o caso, aqueles em curso nos Juizados Especiais Federais.
A extensão temporal e o rol de processos abrangidos por essa suspensão podem gerar debates judiciais. Do ponto de vista temporal, a redação original do § 5º do artigo 1.037 do Código de Processo Civil estabelecia que os processos suspensos retomariam o trâmite após o decurso de um ano da suspensão, mas esse dispositivo foi revogado pela Lei 13.256/2016.
Em relação ao alcance da suspensão, resta saber se, diferentemente do que se extrai da literalidade do comando do Superior Tribunal de Justiça, a suspensão abrangeria apenas os casos em que for ponto controvertido entre as partes saber se a oferta de seguro-garantia judicial ou de fiança bancária tem o condão de suspender a exigibilidade de crédito não tributário[1], e se o processamento e exame das demais questões poderia prosseguir, inclusive com julgamento definitivo[2]. O Enunciado 126 da II Jornada de Direito Processual Civil fixou a orientação, já referendada por julgado da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, de que “o juiz pode resolver parcialmente o mérito, em relação à matéria não afetada para julgamento, nos processos suspensos em razão de recursos repetitivos, repercussão geral, incidente de resolução de demandas repetitivas ou incidente de assunção de competência”[3].
O seguro-garantia, hoje regulado pela Circular 662/2022 da Superintendência de Seguros Privados (Susep), quando apresentado no âmbito judicial, destina-se a garantir o cumprimento das obrigações do tomador do seguro (aquele que o contrata) em um determinado processo judicial do qual o tomador seja parte, no caso de inadimplemento do tomador e desde que preenchidos os requisitos para pagamento pela seguradora.
O seguro-garantia judicial tem, atualmente, papel e função extremamente importantes para as atividades empresariais. Diversas normas já equiparam o seguro-garantia judicial ao depósito em dinheiro, como os artigos 835, §2º, e 848 do Código de Processo Civil.
Essa espécie de garantia mitiga os efeitos prejudiciais da penhora e, em especial, do depósito judicial, ao desonerar os ativos de sociedades empresárias e pessoas físicas, além de assegurar, com a mesma eficiência, o pagamento do valor discutido na ação judicial. Assim, o seguro-garantia judicial é uma ferramenta importante, utilizada para assegurar o cumprimento de obrigações judiciais sem impacto ao caixa das companhias. Permite-se, assim, que as cobranças de dívidas sejam feitas da forma menos onerosa ao devedor, como manda o artigo 805 do Código de Processo Civil.
Nesse sentido, em 2019[4], a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça já havia entendido que era cabível a suspensão da exigibilidade do crédito não tributário a partir da apresentação da fiança bancária e do seguro-garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento.
A conclusão, naquele momento, foi de que o seguro-garantia judicial produz os mesmos efeitos jurídicos do dinheiro, não sendo aplicável o entendimento adotado para créditos tributários. Nesse ponto, o atual posicionamento jurisprudencial majoritário é no sentido de que o seguro-garantia judicial, embora equiparável a dinheiro, não possibilita a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, porque o artigo 151, inciso II, do Código Tributário Nacional, traz rol taxativo das hipóteses de suspensão do crédito tributário, dentre as quais consta apenas o depósito integral.
A questão foi tratada na Súmula 112 do Superior Tribunal de Justiça e no julgamento do recurso especial representativo de controvérsia 1.156.668/DF, de modo que a apresentação de seguro-garantia judicial não obsta a execução fiscal, servindo apenas para garantir o débito exequendo e permite a expedição de certidão positiva com efeitos de negativa e a oposição de embargos à execução fiscal pelo contribuinte.
Apesar desse entendimento de 2019, voltou à pauta de debate a discussão a respeito da aplicação do artigo 151, inciso II, do Código Tributário Nacional para permitir a suspensão da exigibilidade do crédito não tributário apenas por depósito, ou se o silêncio da legislação permitiria a suspensão de sua exigibilidade mediante apresentação de seguro-garantia judicial, já que equiparável a dinheiro.
Eventual decisão contrária à suspensão da exigibilidade impactará sensivelmente o mercado securitário e a sistemática de discussão judicial de créditos não tributários. Para o mercado securitário, haverá impacto adverso, caso se afaste a possibilidade de aceite de seguro-garantia judicial para suspensão da exigibilidade de créditos não tributários, em especial em ações de conhecimento que têm como objetivo evitar o ajuizamento de execução. Para a economia, esvaziar-se-á uma modalidade robusta de garantia disponível hoje, fazendo com que empresas sejam obrigadas a efetuar depósito judiciais de valores expressivos, com o objetivo de evitar, por exemplo, ajuizamento de execução fiscal com majoração expressiva do débito. Esse resultado diminuiria a disponibilidade e a alocação de recursos voltados à ampliação da produção e prestação de serviços, mas sem ganho em contrapartida.
Assim, na linha do entendimento de 2019 do próprio STJ espera-se que o seguro-garantia judicial continue sendo modalidade aceita, amplamente equiparável ao dinheiro, para fins de suspensão da exigibilidade de créditos não tributários: seja pela inexistência de restrição legal aplicável para esses casos, seja pela equiparação a dinheiro nos termos da lei infraconstitucional.
[1] O artigo 543-C, § 1º, do Código de Processo Civil de 1973 somente permitia “a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida”.
[2] O Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela possibilidade de julgamento parcial de recursos especiais, resolvendo a parte não abrangida pela afetação e, na sequência, determinando a suspensão do processo e devolução dos autos ao tribunal de origem para aguardar a decisão do representativo (p. ex., recurso especial 1.606.705/RS, relator Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe: 21/6/2017).
[3] “4. Nos termos do Enunciado 126 da II Jornada de Direito Processual Civil/CJF, “o juiz pode resolver parcialmente o mérito, em relação à matéria não afetada para julgamento, nos processos suspensos em razão de recursos repetitivos, repercussão geral, incidente de resolução de demandas repetitivas ou incidente de assunção de competência”. Assim, deverá o juiz deixar de proferir decisão sobre as teses afetadas, sobrestando o processo quanto aos capítulos relacionados, sem prejuízo de decisão e seguimento do feito no que diga respeito às demais questões. A homologação de acordo entre as partes excluindo a questão das matérias controvertidas também afastará o sobrestamento.” (EDcl no REsp n. 1.328.993/CE, relator Ministro Og Fernandes, Primeira Seção, julgado em 26/6/2019, DJe de 27/6/2019).
[4] Recurso Especial nº 1.381.254–PR, julgado em 25 de junho de 2019. Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho.
Fonte: Jota