A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) defende que a determinação de inclusão das tecnologias aprovadas para oferta no SUS na cobertura obrigatória dos planos de saúde, prevista em medida provisória, não tem efeito retroativo. Uma interpretação diversa sobre o escopo do ato normativo poderia atender a interesses específicos do Ministério da Saúde, autor da proposta, já que nele estariam, por exemplo, as vacinas da Pfizer e da AstraZeneca para Covid-19.
A MP 1067/21, publicada no dia 3 de setembro para modificar o processo de atualização do rol da ANS, foi anunciada em julho pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, após o veto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao projeto de lei que previa a cobertura automática de antineoplásicos orais na saúde suplementar. Existiu consenso entre ministério, agência e Presidência da República de que o PL 6330/19 teria um efeito negativo. A MP, por sua vez, enfrenta forte resistência da ANS.
Segundo a análise da proposta feita pelo Palácio do Planalto, obtida pelo JOTA por meio da Lei de Acesso à Informação, a pasta afirma que a medida provisória “apresenta uma solução concreta e efetiva para lidar com o problema de limitação de acesso” e “gera isonomia de acesso à saúde privada com os serviços públicos de saúde”. O objetivo central seria tornar mais próximos os processos de avaliação de tecnologia em saúde (ATS) do SUS e da saúde suplementar.
A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), no entanto, tem 180 dias, prorrogáveis por mais 90 dias, para fazer sua recomendação final. Depois da publicação da decisão pela Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE), existe o prazo de mais 180 dias para a efetiva oferta no sistema público. A MP fixa para a reguladora dos planos de saúde 120 dias, prorrogáveis por mais 60 dias, para a conclusão da etapa de ATS. Esgotado esse tempo, haverá incorporação automática até a decisão final da agência.
A ANS havia publicado no mesmo mês a norma (RN 470) com novas regras para o trâmite: submissão contínua de propostas, prazo máximo entre 18 e 24 meses para a análise de cada tecnologia e publicação semestral do rol. Esse formato refletiria, na visão da agência, “o melhor desenho possível para o processo de atualização do rol”, conforme a nota técnica encaminhada ao ministério.
Diante das avaliações opostas, o Planalto retornou a minuta de MP à pasta, questionando se haveria intenção de manter o texto. Dada a resposta positiva, a análise concluiu que a decisão final sobre a proposição de atos normativos relacionados à área da saúde é prerrogativa do ministro de Estado, independentemente da avaliação da agência.
A versão sustentada por alguns representantes da ANS ouvidos pelo JOTA, entre integrantes do alto escalão e servidores, é a de que o Executivo tenta enfraquecer a agência reguladora e pode afetar a sustentabilidade do setor com a eliminação da etapa de avaliação de tecnologia específica para a saúde suplementar.
Além de reduzir o tempo de análise da agência para no máximo 180 dias, com previsão de incorporação automática em caso de descumprimento, a medida provisória também determina a inclusão no rol, em até 30 dias, das tecnologias incorporadas ao SUS. Existem divergências, no entanto, sobre a aplicação desse trecho.
O art. 1º, § 8º da MP 1.067/2021 diz: “As tecnologias avaliadas e recomendadas positivamente pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – Conitec, instituída pela Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011, cuja decisão de incorporação ao SUS já tenha sido publicada, serão incluídas no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar no prazo de até trinta dias”.
Uma interpretação é a de que o dispositivo se refere a todas as decisões oficializadas antes da edição da medida provisória, o que daria à ANS um prazo de 30 dias corridos para a atualização do rol com as tecnologias cobertas pelo SUS. Nesse caso, a reguladora teria até o dia 3 de outubro para cumprir a determinação.
De acordo com a agência, porém, o prazo de 30 dias começa a correr após a decisão de incorporação que seja publicada a partir do dia 3 de setembro, data de início da vigência da MP. A lógica adotada é a de que a medida provisória não pode alcançar atos passados, devido à inviabilidade de efeitos retroativos.
SUS: 66 tecnologias incorporadas desde 2019
Dados levantados pelo JOTA no site da Conitec mostram que, entre 4 de maio de 2019 — data limite para a submissão de tecnologias para o atual rol da ANS, definido pela RN 465/21 — e outubro de 2021, houve incorporação ao SUS de 66 novas tecnologias, entre as quais estão as duas vacinas contra a Covid-19 registradas no Brasil, dispositivos médicos e medicamentos de alto custo.
O recorte considerado pela ANS, por enquanto, engloba apenas a decisão referente ao implante de drenagem oftalmológico para o tratamento do glaucoma primário de ângulo aberto leve a moderado, datada de 8 de outubro. As decisões sobre os medicamentos tiamazol e levetiracetam foram descartadas por se enquadrarem nas exclusões legais previstas no art. 10 da Lei 9656/98.
Na prática, significa que a reguladora terá até o dia 8 de novembro para alterar o rol em atendimento à MP. Antes disso, haverá a aprovação de uma norma com o intuito de adequação das regras atuais ao texto. A proposta normativa foi apreciada pela diretoria colegiada no dia 28 de setembro e passa por análise jurídica para retornar à votação.
A RN 470 entrou em vigor no dia 1º de outubro. Apesar de ter alguns dispositivos com eficácia suspensa devido a conflitos com a MP 1067/21, foi mantida a possibilidade de submissão de tecnologias para o próximo rol. Até o dia 15 de outubro, foram recebidos oito pedidos de avaliação, sendo um para a inclusão de consulta com profissional não médico e sete para medicamentos, dos quais quatro são antineoplásicos e três são imunobiológicos.
No último dia 20, o diretor-presidente da ANS, Paulo Rebello, afirmou em reunião da Câmara de Saúde Suplementar (Camss) que tem atuado no Congresso para preservar os interesses da agência. Tanto o veto ao PL 6330/19 quanto a MP 1067/21 podem ser colocados para votação no Legislativo.
Em sua fala, Rebello argumentou que a edição da medida provisória desconsiderou a norma já aprovada e chegou a mencionar uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) favorável à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em razão de uma deferência técnica.
A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) e a Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abramge), entidades que representam as operadoras, informaram que as empresas aguardam a atualização do rol pela ANS e que irão cumprir a decisão da agência.
Vacinas se enquadrariam na exclusão legal
Desde que foi nomeado ministro da Saúde, em março deste ano, Queiroga tem tentado fazer com que as operadoras arquem com os custos de vacinação dos beneficiários de planos de saúde. A ideia sempre foi rejeitada pela diretoria da ANS, que apontava óbices em relação à aquisição, à organização de um programa privado de vacinação e ao consequente repasse de custos aos consumidores.
No mês de junho, o secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Hélio Angotti, enviou um ofício à ANS para solicitar a inclusão das vacinas na Pfizer e da AstraZeneca no rol de cobertura obrigatória. Ambas possuem registro na Anvisa e já haviam sido incorporadas no SUS.
Em resposta enviada em setembro, após a edição da medida provisória, a reguladora usou a legislação vigente para justificar a inviabilidade de incorporação. Entre os normativos mencionados, está a própria Lei 6259/75, que dispõe sobre o Programa Nacional de Imunizações (PNI).
“Não seria possível a inclusão das vacinas no rol de procedimentos e eventos em saúde, de caráter obrigatório para as operadoras de planos privados de saúde, sem que a vacinação no âmbito da saúde suplementar seja conflitante com a legislação vigente, a menos que os imunizantes fossem ‘subvencionados pelos governos federal, estaduais e municipais, em todo o território nacional’, conforme dispõe o texto legal”, diz o documento.
Também foram explicadas dificuldades relacionadas à Lei 14.125/21, que prevê a doação de 50% das doses adquiridas pelo setor privado ao sistema público, o que geraria um custo mais alto aos planos para a imunização dos beneficiários, dificuldade de ressarcimento ao SUS e imprevisibilidade de impacto financeiro.
Mesmo se a interpretação da ANS fosse pela incorporação de tecnologias do SUS anteriores ao vigor da MP 1.067/21, o argumento da reguladora seria de que as vacinas também estariam entre as tecnologias enquadradas na exclusão legal, apesar de não haver discriminação no art. 10 da Lei dos Planos de Saúde (Lei 9656/98).
As vacinas da Pfizer e da AstraZeneca são consideradas prioritárias pelo Ministério da Saúde para o PNI em 2022.
Implante cardíaco é pauta de Queiroga
O implante percutâneo de válvula aórtica (TAVI) para tratamento da estenose aórtica grave em pacientes inoperáveis também entraria na lista de incorporações ao SUS anteriores à medida provisória. O dispositivo já está no atual rol da ANS, mas com diretriz de utilização mais restritiva, atendendo apenas em parte à solicitação de inclusão.
As operadoras de planos de saúde são obrigadas a cobrir o procedimento para pacientes com idade igual ou maior que 75 anos, com expectativa de vida superior a um ano, sintomáticos, inoperáveis ou com alto risco cirúrgico.
A utilização do TAVI é uma pauta antiga do ministro Marcelo Queiroga. Em 2013, ano em que ele ocupou a posição de presidente da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista (SBHCI), a entidade apresentou o primeiro pedido à Conitec, mas não houve um resultado favorável à incorporação.
No mesmo ano, o ministro foi um dos autores do artigo científico “Implante por Cateter de Bioprótese Valvular Aórtica para Tratamento de Estenose Valvar Aórtica Grave em Pacientes Inoperáveis sob Perspectiva da Saúde Suplementar – Análise de Custo-Efetividade”, citado na análise mais recente da comissão.
Em março de 2021, antes de Queiroga assumir o ministério, a SCTIE fez um novo pedido de avaliação para a Conitec. Inicialmente, o plenário foi contrário à oferta do tratamento, mas mudou o posicionamento após a realização de consulta pública. A comissão deu parecer final positivo no dia 5 de maio, desde que o procedimento seja custo-efetivo para o SUS, o que se resume à compra do dispositivo pelo preço máximo de R$ 35,5 mil. A decisão de incorporação foi publicada no dia 2 de julho.
O ministro está entre os cirurgiões cardiovasculares na lista de profissionais certificados em TAVI mantida pela SBHCI. Tanto Queiroga quanto o sogro do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), Hélio Roque Figueira, fazem parte do conselho consultivo da entidade.
O Ministério da Saúde foi procurado oficialmente para comentar sobre o trecho da MP e sobre a incorporação do TAVI, mas não se posicionou.
Fonte: Jota