STF volta a suspender análise sobre tratamento médico sem consentimento do paciente

dez 26, 2025 | Civil

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, pediu vista, nesta terça-feira (23/12), dos autos do julgamento do Plenário sobre a possibilidade ou não de intervenções médicas ou cirúrgicas, como a transfusão de sangue, sem o consentimento do paciente.

Com isso, a sessão virtual foi suspensa. O julgamento já havia sido interrompido em setembro, quando a análise do caso começou.

Antes do pedido de vista, o julgamento já contava com os votos dos ministros Kassio Nunes Marques e Cristiano Zanin. Ambos entenderam, de modo geral, que os pacientes adultos têm o direito de decidir se e como vão se submeter a determinado tratamento. Mas as teses propostas diferem em detalhes sobre responsabilidades dos médicos, casos de crianças, situações de urgência etc.

Contexto

O colegiado analisa duas ações que questionam possíveis interpretações do Código Penal e de resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj).

A primeira delas foi movida em setembro de 2019 pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, com o objetivo de garantir que testemunhas de Jeová maiores de idade e capazes possam optar por não fazer transfusões de sangue devido às suas convicções religiosas.

Testemunhas de Jeová costumam recusar transfusões de sangue, pois consideram que o procedimento viola leis divinas.

O inciso I do parágrafo 3º do artigo 146 do Código Penal prevê que a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente não caracteriza o crime de constrangimento ilegal se houver iminente risco de morte.

Para Dodge, a regra parte das premissas equivocadas de que a medicina deve cuidar da saúde das pessoas sem preocupações religiosas e de que a recusa pode ser encarada como suicídio, desejo de morte ou desprezo pela saúde e pela vida.

Segundo ela, o mesmo vale para uma resolução de 1980 do CFM que autorizava os médicos a fazerem transfusão de sangue mesmo sem consentimento do paciente em casos de iminente perigo de vida; e para uma resolução de 1999 do Cremerj que também abria essa possibilidade.

A então PGR ressaltou que as testemunhas de Jeová aceitam métodos alternativos à transfusão de sangue.

Ela pediu para o STF afastar qualquer entendimento que obrigue médicos a fazerem transfusão quando o paciente maior de idade e capaz recusá-la.

A resolução de 1980 do CFM foi revogada em 2019 por outra, com previsões semelhantes. Por isso, a PGR aditou a petição inicial e incluiu a nova norma no escopo da ação.

Em dezembro de 2019, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) acionou o STF para contestar a mesma resolução do CFM daquele ano, com o argumento de que ela teria criado obstáculos para a “recusa terapêutica”.

Para a legenda, o CFM não pode interferir no direito das pessoas em recusar tratamentos médicos. Regras sobre o tema só poderiam ser estabelecidas por lei.

O efeito da prático da medida, segundo o partido, seria retirar a autonomia de pessoas com deficiência, crianças, adolescentes, idosos, pessoas com doenças transmissíveis, gestantes e pacientes terminais. Estes últimos não poderiam decidir sobre seus cuidados paliativos.

Decisões recentes

Já em setembro do último ano, o STF, ao analisar outros recursos sobre o mesmo tema, decidiu que testemunhas de Jeová maiores de idade podem recusar transfusão de sangue, desde que a recusa seja manifestada pelo próprio paciente.

Os ministros ainda apontaram que os religiosos têm direito a tratamentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS).

No caso de crianças, ficou estabelecido que os pais podem optar por procedimentos alternativos, desde que isso não contrarie a avaliação médica.

Por fim, de acordo com as teses aprovadas, médicos podem se recusar a fornecer tratamentos alternativos.

Em agosto, o STF manteve essa decisão. Ela tem repercussão geral, ou seja, serve para casos semelhantes nas demais instâncias do Judiciário.

Com o início do novo julgamento sobre o tema, Nunes Marques, relator tanto da ação da PGR quanto da ação do PSOL, reuniu-as para julgamento conjunto.

Voto do relator

O relator votou por ratificar as teses de repercussão geral e impedir qualquer interpretação do Código Penal ou das resoluções do CFM e do Cremerj que obrigue os médicos a fazerem transfusão de sangue contra a vontade do paciente maior de idade e capaz.

Nunes Marques reiterou que a liberdade de consciência e de crença deve prevalecer quando a pessoa estiver “em pleno gozo das capacidades civis” e manifestar “de forma livre e inequívoca a vontade de não se submeter a qualquer tratamento que envolva transfusão de sangue”.

Para ele, o Estado não pode obrigar um paciente a se submeter a determinada técnica ou procedimento médico: “Não é razoável obrigar uma pessoa dotada de plena capacidade civil e discernimento a submeter-se a tratamento médico que contrarie sua convicção religiosa.”

De acordo com o magistrado, todas as pessoas têm o direito de decidir “se e de que forma desejam submeter-se a procedimento médico”.

Com relação aos casos em que não há tratamento médico alternativo, Nunes Marques apontou que, embora a eutanásia seja ilícita, é possível escolher o processo de morte. Isso é chamado de ortotanásia.

Assim, ele reconheceu que testemunhas de Jeová podem recusar o tratamento médico mesmo se houver risco iminente de morte.

Da mesma forma, os profissionais de saúde não têm obrigação de fazer um procedimento recusado pelo paciente para salvar sua vida. Por outro lado, os médicos ainda têm o dever de adotar todas as medidas compatíveis com a crença do paciente.

Se todas as alternativas forem esgotadas, os profissionais de saúde ou o Estado não respondem (na esfera penal ou civil) por eventuais danos decorrentes da falta de transfusão de sangue.

Já sobre menores de idade, o relator explicou que os pais podem decidir o tratamento médico se existirem tratamentos alternativos disponíveis e compatíveis com a crença da família.

Mas, se houver risco concreto de morte e indisponibilidade de tratamento alternativo, os reprentantes legais da criança ou do adolescente não podem recusar o tratamento capaz de salvar sua vida.

Divergência

Zanin apresentou uma proposta de tese diferente. Ele considerou que o inciso I do parágrafo 3º do artigo 146 do Código Penal se aplica apenas às situações nas quais não é possível obter o consentimento do paciente e invalidou alguns trechos das resoluções do CFM e do Cremerj.

Para Zanin, pacientes adultos e capazes têm o direito de tomar suas próprias decisões médicas e precisam consentir com qualquer tratamento.

Na sua visão, a intervenção médica sem consentimento só não é crime quando não há como saber a vontade do paciente — por exemplo, se a pessoa chega no hospital desacordada e precisa de uma cirurgia urgente para evitar a morte.

O ministro explicou que o CFM pode regulamentar a atividade profissional dos médicos, mas não pode restringir os direitos dos pacientes. O conselho também deve seguir a legislação em vigor.

De acordo com o magistrado, o CFM ultrapassou os limites da sua atuação ao editar a resolução de 2019. Alguns trechos, por exemplo, autorizaram a intervenção médica em casos de urgência e emergência quando a recusa trouxer “danos previsíveis à saúde”.

Como o Código Penal autoriza as intervenções sem consentimento apenas em casos de risco iminente de morte, Zanin entendeu que a resolução ampliou essas hipóteses “sem respaldo normativo adequado”.

Segundo ele, o CFM liberou intervenções em casos de recusa, ou seja, contra a vontade do paciente, o que não é permitido pela legislação penal.

Na visão de Zanin, se o paciente precisa ser tratado com urgência e recusa a transfusão de sangue, o médico deve avisá-lo sobre os riscos da recusa e tratá-lo sem esse procedimento, conforme os recursos disponíveis.

O ministro entendeu que outro trecho da resolução do CFM “parece limitar” o direito de recusa a tratamentos eletivos. Por isso, ele votou por estabelecer que o direito à recusa abrange tanto procedimentos eletivos quanto tratamentos indicados em contexto de urgência ou emergência.

Com relação a crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, o magistrado afirmou que o médico deve respeitar a recusa. Mas se houver suspeita de conflito entre a decisão do representante e a vontade presumida do paciente adulto ou o melhor interesse do paciente criança, o médico não deve aceitar a recusa e precisa pedir autorização ao Judiciário para fazer a intervenção.

Por outro lado, nesses casos de conflito entre os interesses do paciente e a decisão do representante, se o dano à saúde ou à vida for iminente, sem possibilidade de se aguardar a decisão judicial, o médico pode intervir.

A resolução do CFM também classifica como abuso de direito a recusa terapêutica que coloque em risco a saúde de terceiros e a recusa ao tratamento de doenças transmissíveis ou condições semelhantes capazes de expor a população a risco de contaminação.

De acordo com Zanin, isso ultrapassa a competência normativa do órgão, pois limita direitos individuais dos pacientes e impõe um tratamento arbitrário a qualquer pessoa com doença transmissível.

Ainda segundo a resolução, a recusa manifestada por gestante, a depender da situação, pode ser classificada como abuso de direito da mulher em relação ao feto.

O ministro considerou que isso desprotege os direitos das mulheres grávidas. “A gestação não afasta o direito da gestante de se autodeterminar”, pontuou. Para ele, a gestante pode optar entre diferentes intervenções ou vias de parto, conforme os riscos aos quais estiver disposta a se submeter.

Mesmo assim, a necessidade de alguma intervenção destinada a proteger o feto “pode surgir em situações absolutamente excepcionais”, quando houver risco iminente à vida ou à saúde da futura criança e a medida for estritamente necessária para evitá-lo. Ou seja, nessas situações é possível limitar a autonomia da gestante.

Por fim, o magistrado votou contra um trecho da resolução do Cremerj que estabelece um dever médico de fazer transfusão de sangue contra a vontade dos pacientes testemunhas de Jeová. Ele ressaltou que isso é “incompatível com a proteção constitucional dos direitos dos pacientes”.

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Fonte: Conjur